segunda-feira, 19 de novembro de 2012

O Registrador de Nomes

Postado por Djessyka às 13:03 0 comentários
Existe uma figura que eu nunca soube ao certo quem é. Sei que é má. Se o nome do seu filho não correspondeu exatamente ao esperado, tenho certeza que a culpa é dele. Vive atrás de uma mesa de madeira escura, é completamente careca, usa uma roupa preta. Possui uma estante com livros enfileirados e cheios de pó em suas costas. Ele jamais ouve duas vezes, jamais é corrigido, e, finalmente, nada volúvel em todos os aspectos. Talvez seja um pouco surdo. Você não é capaz de identificá-lo em uma multidão comum, não sei exatamente por qual motivo, na verdade, acho que ele vive mesmo atrás da mesa de madeira brilhante. Mas o pior de tudo: o velho rabugento faz com que milhares de crianças sejam chamadas somente por um único nome até o último dia de suas vidas. Quem já teve filhos pôde conhecê-lo pessoalmente. Sinceramente, não me sinto preparada para conhecer essa figura tão assustadora. É ele. Muito pior que o "Homem do Saco", o "Homem das Neves" ou "Pé Grande" e terrivelmente pior que o "Ermitão". É o "Homem do Cartório". O Homem do Cartório é basicamente um ser estranho pra mim. Confuso talvez. Quantos nomes "eram pra ser" mas o Homem do Cartório não deixou? E o pior: Quantos nomes foram falados de forma errônea e o Homem do Cartório nem se quer sugeriu uma correção? Ouviu de forma surda e abafada e assim registrou o nome que a criança levaria por toda sua existência. Estou certa  de que na sua família alguém "era pra se chamar" mas o "Homem do Cartório" foi ineficiente. Mau. Ele foi mau. Ele ouviu e registrou. Ouviu e registrou. Ouviu e registrou. Ouvir, registrar. Ouvir. Registrar. Ouvir Registrar. Estou, na verdade, achando que o Homem do Cartório está cansado, afinal ele registrou seus bisavós, seus avós, seus pais... Alguns certos, outros errados, afinal, quem foi que criou essa profissão de Homem do Cartório? Acho mesmo é que cada um deveria registrar o nome do seu próprio filho, assim, em caso de erro, nenhum de nós poderíamos culpar o cansado e sozinho Homem.
Você já parou pra pensar que ele sabe o nome de todos nós? Se alguém, por acaso, chamar por você na rua e você não reconhecer nenhum rosto, tenho certeza que pode ser o Homem do Cartório, mas isso não acontece com frequência porque raramente ele sai de perto da sua estante de livros. Aliás, deve ser por isso que o chamamos Homem do Cartório: ele registrou todos nós, mas quem o registraria? Não havia ninguém lá para registrá-lo? Ele não pode registrar a si mesmo? Justo ele, que conhece tantos nomes bonitos, italianos, americanizados, curtos, compostos. Justo ele não pode ter um nome? Acho que por isso o pobre homem parece tão mau. Carrancudo, surdo. Rabugento. Ele faz com que cada um de nós tenha um nome próprio, e ele, sempre a registrar, só pôde ser chamado de Homem do Cartório.

A História de Kimy

Postado por Djessyka às 12:58 0 comentários

Era um lagarto colorido. Akemi rodopiava pelas salas transformando clientes em crianças curiosas. Era o verdadeiro lagarto colorido e sua criança. Kimy, como era chamada pelo pai, transformava dores de cabeça, dores nas costas, problemas  estomacais, renais e feridas abertas em curiosidade. Mesmo nascendo com a visão completamente prejudicada, Kimy conhecia cada pedaço das salas de acupuntura do pai e tinha um mapa perfeitamente desenhado em sua cabeça. Pelas macas, contornava com um desenho perfeito de suas mãozinhas e sentava em um espaço qualquer para espiar quem chegasse. Kimy espiava com os ouvidos. Ouvia vozes magras, gordas, bonitas, extravagantes e, de acordo com o timbre, a menina puxava um assunto diferente. Havia o senhor meio perturbado com um zunido frequente no ouvido para quem Akemi contava suas travessuras. A menina sentia o senhor esboçando sorrisos mas continuava a contar peripécias até ouvir um balbucio de risada bem definido, então saia correndo se esconder. Imprevisível como um lagarto colorido diante de uma criança.
Era incrível aos olhos da menina o quanto as pessoas pareciam melhorar quando ela contava-lhes uma história qualquer.
A mulher que sempre trazia chocolates tinha a voz tão doce quanto os mesmos. Quando a pequena Kimy ouvia sua voz, saía em disparada. Tinha a senhora com a voz tão engraçada que a menina imaginava sua casa cheia de cachorros, mas nunca perguntou se ela realmente os tinha, a resposta poderia ser negativa e Kimy poderia se decepcionar. As crianças doentinhas chegavam de vez em quando e, por estas, Kimy tinha um carinho especial: apoiava os bracinhos magros na maca, oferecia sua mão, e, em poucos segundos, sentia outra mãozinha na sua. Ela sabia que nem todas as crianças tinham tanta afinidade por agulhas como ela, afinal, quando a menina adoecia, o pai espetava-lhe agulhas e ela, com dor, sorria, pois o pai já havia lhe contado como as pessoas pareciam verdadeiros porcos-espinhos naquele momento.
Kimy esperava os dois melhores momentos do dia: as últimas agulhas tilintando na pequena bandeja. As agulhas tilintavam a todo momento. A cada cliente que ia embora, haviam agulhas a tilintar, pra você, pra mim e pra qualquer um que estivesse lá, os barulhos seriam exatamente iguais, mas jamais para Kimy, ela sabia exatamente quando a tilintada significava "almoço com o pai" e "hora de ir para casa". Sentia uma alegria quase inexplicável quando ouvia a última tilintada da manhã porque adorava sentar à mesa com o pai, mostrando que já podia comer sozinha. Kimy sentia-se revigorada para voltar e conversar com seus amigos. Ela sabia que sexta-fera encontraria a senhora Keiko, que iria lhe contar sobre seus netinhos.
Mas a melhor hora era a última tilintada. Quando as últimas agulhas tilintavam na bandeja, Kimy ajudava o pai com os lençóis e toalhas, e subiam os dois para casa e conversavam como dois adultos, brincavam como duas crianças, Kimy fazia de conta que espetava agulhas no pai, e estavam sempre os dois, sozinhos e sempre juntos, juntos sozinhos, pai e filha como se fossem um só.
Como fazia uma vez por semana, o pai de Kimy deixou a menina na casa da avó para limpar seu estabelecimento. Como sempre, comprou o doce de frutas preferido de Kimy, e, de trem, deixou a menina com a avó para realizar a limpeza. Kimy vestia sua melhor saia de pregas e limpava seus sapatinhos para a visita semanal. Levava um livro de histórias em baixo do braço para que a avó lesse um bom conto de fadas, afinal, Kimy contava histórias durante toda a semana, então, neste dia, gostava de adormecer ouvindo a voz da avó. A avó era brilhante ao descrever as figuras dos livros para Kimy, ninguém poderia explicar melhor como eram as nuvens, o céu, a Lua, as estrelas, e até as cores. Neste dia, a pequena Akemi só sentia falta de uma coisa: O tilintar das agulhas que a acalmavam e a colocavam em um estado de ânimo indescritível. Mas ela sabia que no dia seguinte, ouviria aquele tilintar, sabendo que ali estaria o pai, pronto para dedicar-lhe tempo.

***

Completamente destruído, o estabelecimento do pai, juntamente com a casa dos dois, levou o melhor amigo da menina. Foi a bomba. Kimy ouviu a avó falar baixinho. Ela não sabia, mas era 6 de agosto de 1945 e nunca mais voltaria a ouvir o tilintar das agulhas na bandeja. Se quer sabia se seus amigos doentes ainda estavam vivos. Se quer sabia onde morava agora. Akemi não conseguia lembrar do som das agulhas e por isso chorou. Estava agora cega dos ouvidos. O único lugar que ela conhecia exatamente como a palma de sua mão fora destruído por uma única bomba. Agora, e só agora sentiu-se cega de verdade. Agora, e somente agora sentiu-se sozinha de verdade.


 

Bela Sopa Template by Ipietoon Blogger Template | Gadget Review