A menina então, veio até mim, andando pelas nuvens com uma desenvoltura impressionante, pegou minha mão, e com um sorriso indescritível, perguntou se poderia me ajudar. Aceitei sua ajuda e rimos um pouco com meus passos errados e indefinidos, mas em poucas horas, estávamos as duas correndo pelo Paraíso, pulando riachos, e nos divertindo com as águas que nos chegavam pelas canelas.
- Como se chama? -Perguntei.
- Laura- ouvi- Me chamo Laura.
- O que faz aqui, Laura?
- Faço o que gosto!
- Que tipo de brinquedos são aqueles que você brincava assim que cheguei?
- Não são brinquedos.
- O que são?
Sem dar atenção para minha pergunta final, Laura me puxou pela mão e, juntas, seguimos um belo caminho, contornado por tulipas avermelhadas, simetricamente dispostas. Os pontos de luz continuavam a piscar e as flores, surpreendentemente, continuavam a desabrochar. Distante, víamos alguns animais soltos: cães, cavalos, ovelhas...
- Tá vendo? São meus animais preferidos, ganhei todos assim que cheguei aqui. O cachorro branco, o maior, se chama Alfredo. E lá- Apontando- Lá é minha casa, vem cá!- Disse Laura.
Segui a menina, que abriu a porta. Sua casa era surpreendente. Havia flores por toda parte. Era branca, totalmente branca. Na entrada, os ramos contornavam a porta, com uma doçura que lembrava o próprio rosto da menina. As pequenas luzes piscavam até mesmo dentro de sua casa.
- Quem cuida de você, Laura?
- Deus- Respondeu.
- Onde Ele está? Não pudê vê-lo até agora- Falei desapontada.
- Ora, você está sendo injusta- Disse Laura- Olhe tudo a nossa volta. Veja as flores, o riacho, as árvores, os cães. Você viu aquele arco- íris, não viu? Viu aquelas cores? Viu os raios de sol que invadiram tudo por aqui? Como você pode dizer que não viu Deus? Deus está em tudo isso, está dentro de você e de mim. Ele está cuidando da gente agora, você não sente? Foi por isso que Ele me trouxe pra cá. Precisava de mim.
Olhei a minha volta, prestei atenção nas cores, no riacho, nas árvores, nas flores e fechei os olhos por alguns instantes.
- Sinto só paz, Laura.
- O que você acha que é Deus?
- Paz?
Foi quando fomos surpreendidas por um grupo imenso de crianças, para meu espanto, nenhuma vestida de branco. Cada uma vestindo uma cor diferente, algumas com mais de uma cor. Laura abriu um sorriso lindo ao vê-los e disse com empolgação:
- Espera só um pouquinho? É hora de brincar. Eu quero brincar!
Sorri para a menina, aprovando seu pedido, ela agradeceu e se misturou às outras crianças. Sentei no degrau da porta de Laura e observei as crianças brincando: ora com os cães, ora correndo, ora se escondendo, cantando, chutando a água do riacho umas nas outras. De vez em quando, ela diminuía os passos, desacelerando, para ver se eu ainda estava lá, virava a cabeça e m'entrgava um sorriso encantador. Não sei exatamente quanto tempo passei observando aquelas crianças, mas a cada sorriso, a cada gargalhada, eu sentia a paz que a menina havia me falado mais cedo.
Quando Laura voltou, estava ainda mais iluminada, as luzinhas piscavam incansavelmente a sua volta e as flores desabrochavam ainda mais. Eu estava curiosa, e resolvi perguntar:
- Laura, por que essas luzes piscam o tempo todo em volta de você?
- São as velas- Disse.
- Velas?
- As pessoas que me amaram muito, antes de eu precisar vir pra cá, agora acendem velas pra mim. Pra me iluminar. Cada vez que eles acendem, as luzes piscam. Ainda sou muito amada por lá.
- Então as flores... -Eu disse.
- As flores desabrocham por aqui, quando me deixam flores lá.- Sorriu ao olhar as violetas brotando. Vamos voltar lá? Quero te mostrar o que eu faço!
- Com aqueles brinquedos?- Perguntei
- Vem comigo- Ouvi.
Eu já não precisava mais seguir a menina, pois já sabia a direção. Dessa vez, fomos lado a lado. No caminho, me perguntou se eu estava sentindo paz. Respondi positivamente.
Estávamos chegando na mesa! A mesma mesa que a vi somente em vulto "brincando", sem saber explicar exatamente o que era. Laura se posicionou atrás da mesa e disse:
- Vê? Corações!
- Corações? Perguntei espantada.
- Sim! Infelizmente, lá de onde a gente vem, muitas crianças precisam de corações novinhos pra continuar vivendo, mas não existe tantas pessoas assim para doá-los. Assim, preciso escolher as crianças que vão receber o coração. É uma tarefa muito difícil porque tem famílias que comemoram, mas outras podem chorar. Olha só, este coração,está novinho! Mas existe bem mais de uma criança esperando por ele. É isso que eu faço! Ajudo as crianças a receberem corações. Não pude receber meu coração novinho enquanto estava lá.
- Por que não recebeu?
- Precisavam de mim aqui.
- Quem cuidava de você lá?
- Meus pais. Eles sentem minha falta.
- Você sente falta deles?
- Sinto. Mas quando eu menos esperar eles vão aparecer por aqui.
- Existe algo que te entristece? - Perguntei.
- Infelizmente, em meio a todo esse Paraíso uma coisa me entristece.
- O que, Laura?
- Os inconformados.
- Inconformados...?
- Sim, existem pessoas que não me permitem realizar minhas missões com tranquilidade porque não se conformam. - Disse a menina sem perder a doçura.- E continuou: - Ficam lamentando porque não consegui meu coração novinho. Lamentam demais porque mães não quiseram oferecer-me os corações de seus filhos por manterem em seu leito a esperança da recuperação em uma quase morte. O que elas não entendem é que foi Deus quem me chamou, pois precisava de mim. Ele queria que eu ajudasse as crianças a receber os corações. Não gostaria que este tipo de lamentação existisse.
- Mas a doação de órgãos é essencial, Laura, se alguém tivesse tomado consciência disso antes de você...
- Não!- Disse Laura, me interrompendo- Não havia coração novinho pra mim porque Deus e as crianças precisavam de mim! A cultura e os costumes não podem ser feridos. Mas a principal missão deixei nas mãos dos que me amavam. Eles estão trabalhando na divulgação sobre a doação de órgãos: Eles fazem o trabalho deles lá, e eu, o meu, aqui. Mesmo com a separação que tivemos que aceitar, Deus me deu esta função para proporcionar que continuássemos trabalhando juntos! Percebe?
- Então você gosta daqui!
- Muito. Gosto de aparecer para as crianças durante a cirurgia. Passo horas brincando com elas para que se distraiam, sabia? Elas ficam assustadas com minhas asas no início, mas depois brincamos por horas até que se esqueçam que estão trocando de coração!
- Mas você não tem asas, Laura...
- Não tenho asas por aqui.. Mas preciso delas quando apareço para brincar com as crianças de lá, enquanto dormem durante a cirurgia.
- Então você é um anjo!
- Anjo Laura!- Respondeu sorrindo.
Ao ver aquele sorriso inimaginável, ajoelhei diante da menina e abri meus braços. Sem pensar duas vezes, Laura me abraçou, com braços tão leves quanto os passarinhos que voavam sobre nossas cabeças, depois segurou minhas mãos e, sorrindo, disse:
- Já está escurecendo, estamos nos esquecendo, vem, vem comigo.
Juntas, fomos até a casa dela, entrei em seu quartinho dessa vez: A cama era extremamente branca, acompanhando todos o resto do quarto. Havia bonecas, ursinhos e quebra-cabeças. Não me contive e resolvi perguntar:
- Por que tantos brinquedos se você é um anjo, Laura?
- Sou criança também! Ganhei todos esses brinquedos, brinco com todos.
Não me surpreendi, afinal, a menina, apesar de angelical, era infantil, brincalhona e muito bem humorada.
Notei também seu guarda-roupas, fiquei curiosa para saber o que havia lá dentro, mas resolvi não perguntar dessa vez. Para minha sorte, a menina foi diretamente neste móvel e abriu, procurando algo. As roupas não eram vestidos longos e brancos, como havia imaginado. Havia curtos e longos, azuis, rosas, amarelos. Havia saias, blusas de manga curta, longa, até mesmo calças! Todas as roupas tão delicadas quanto o vestido que ela já estava usando. Laura pegou uma caixa branca de tamanho médio e esboçou um belo sorriso.
- Está aqui!- Disse.
Sem entender exatamente, fui atrás da pequena. Saímos de sua casa e começamos a caminhar por uma estrada bonita que, aparentemente, nos levaria a algum lugar que eu não conhecera até então. Apesar da minha curiosidade sobre o conteúdo da caixa, novamente não perguntei. Começava a escurecer enquanto ainda caminhávamos pela estrada. Ouvi da menina:
- Gosta de cantar?
- Gosto!- Eu disse, sorrindo.
- Canta pra mim?- Disse Laura.
Assustada com o pedido, sem saber que música exatamente eu poderia cantar naquele local tão celestial, perguntei:
- Que música você quer ouvir?
- Qualquer uma que tenha meu nome.
Estranhei. Ela queria uma música que contivesse seu nome, mas eu desconhecia.
- Não conheço nenhuma música que cite seu nome, Laura.
- Então faz uma pra mim?
Sem reação, pensei em algumas palavras e tentei colocar um ritmo, mesmo sabendo que jamais conseguiria descrever um anjo em palavras tão tortas e descombinantes. Mesmo assim, tentei, catando:
- Pra quem você tem um coração, Laura?
Seu coração bate por todos,
mas nem para todos você pode mandar um coração...
Pra quem você tem um coração, Laura?
A menina, que parou de caminhar por alguns instantes, levantou a cabeça e tentou me olhar nos olhos. Percebi seu esforço e me abaixei para que conseguisse. Olhando bem pra mim, ela disse:
- Promete que vai terminar essa música? Termina ela pra mim? Promete?
- Prometo!- Eu disse convicta, com um grande sorriso.
Laura me abraçou com força e agradeceu. Seguimos pelo caminho cantando juntas a única estrofe que eu compusera pra ela. Sua voz era tão doce que me inspirava para continuar a poesia musicalizada.
Quando me dei conta, estávamos nos aproximando de um gramado imenso, quase sem fim. Um campo gigantesco, completamente aberto, com milhares de balões coloridos flutuando à meia altura, e cataventos ainda mais coloridos, espetados no chão, rodando com o fraco vento que batia. Resolvi olhar em volta e... Não éramos as únicas! Para minha surpresa, milhares e milhares de outras crianças se aproximavam lentamente do campo, com caixinhas idênticas à de Laura nas mãos. Em poucos instantes, o campo foi completamente tomado pelas crianças: Algumas maiores, outras bem pequenas. Meninas, meninos, Brancas, loiras, morenas, negras. Uma cena maravilhosa. Porém, mais incrível foi quando Laura me pediu para que ajoelhasse ao seu lado, para que ficássemos da mesma altura. Ajoelhei e abracei a menina pela cintura, esperando pelo que iria acontecer.
Com muita doçura, cada criança foi abrindo sua caixinha: Não em perfeita sintonia, algumas abriram um pouco antes, outras um pouco depois, e, a cada caixinha aberta, uma pequena estrela começava a levantar. Iam subindo lentamente, se distanciando das crianças até alcançar uma altura estável. A majestade daquele ocorrido fez com que Laura impedisse uma pequena lágrima de escorrer em meu rosto. Anjo laura disse baixinho:
- Estou...- Eu disse- sem concluir a frase.
- Amanhã precisamos recolher as estrelas na caixinha.
Eu estava ansiosa para recolher a estrela quando acordei. Estava no meu próprio quarto. Fechei os olhos, tentei reencontrá-la sem sucesso. Tudo que eu via em minha mente era o rosto da menina. Sentia paz.
Foi quando percebi qu'eu estava segurando um pedaço de papel. Eu segurava com força. Trouxe o papel para perto dos meus olhos recém acordados e para minha surpresa, era um bilhete. A letra totalmente infantil, dizia:
"Existem crianças especiais. Nascem diferentes das outras. Nascem dotadas de tamanha pureza e inocência que Deus prefere preservar. Deus prefere removê-las do mundo antes que tomem conhecimento de qualquer perversão do ser humano, antes que entendam até onde o homem pode ir em sua podridão de espírito. Deus as retira do mundo por serem estranha e imensuravelmente inocentes."
Que a sua luta não seja nunca esquecida.