terça-feira, 20 de maio de 2014

Miguel translúcido

Postado por Djessyka às 18:51 0 comentários

Miguel não era bom, não era mau. Era só um garoto. Parecia comum, mas não era. Miguel era invisível.

Sobre ser invisível, acredito que devo explicações: Nós invisíveis somos mais ou menos felizes quando comparados às pessoas normais. Arrisco dizer que a maioria de nós, na maior parte do tempo, até gosta de ser invisível. Não posso dizer ao certo se existem graus de invisibilidade, mas tudo me leva a crer que sim. E, se de fato existir, o grau de invisibilidade de Miguel alcançava os mais altos valores de uma escala (ainda) desconhecida. Ninguém via Miguel, poucos o enxergavam, ninguém notava.
Faz algum tempo que Miguel descobriu que era assim, invisível. Na verdade, nós invisíveis acabamos descobrindo ainda com pouca idade.
As outras crianças não faziam questão de gostar de Miguel e vice-versa, e foi aí que ele começou a perceber que ninguém o via. Sua mãe perguntava, a professora perguntava. Começou, então, a gostar da invisibilidade.
Ainda criança, dono de uma maturidade invejável, Miguel passou a entender razoavelmente bem o porquê das coisas. A princípio, não entendia quando as outras crianças passavam por ele sem esboçar qualquer reação, chegou a chorar algumas vezes; mas notava que, quando levava em mãos algum brinquedo bastante interessante, as outras crianças se aproximavam. Antes sentia raiva, depois passou a entender: pobres crianças, viam apenas um brinquedo colorido flutuando, como em um comercial, quase que hipnotizante para alguém daquela idade. Viam o brinquedo deslizando no ar, mas não viam Miguel; já não cabia a ele culpá-las, eram muito novas, não entendiam sobre qualquer quadro (agudo ou crônico) de invisibilidade.
Por volta dos seus nove ou dez anos, Miguel se dava tão bem sendo invisível, que resolveu nem tentar reverter a situação. Qualquer espécie de Comandos Em Ação era o suficiente e o corredor era o melhor lugar pra se inventar qualquer história. Sentia-se tão orgulhoso quando acertava o pulo e criava uma história tão boa que só poderia ser terminada no outro dia, e, isenta de qualquer lição de moral. Ele não precisava disso. Nós invisíveis não precisamos.
Mas como seres humanos relativamente normais, os invisíveis também crescem, e enquanto crescem, não têm vontade de muita coisa, quem é invisível sabe.
 Apesar da pouca vontade, toda experiência que um invisível está prestes a ter, por menos radical que seja, tomam-se por um imenso e incontrolável frio na barriga. Invisíveis também não gostam de mudanças. Todos.

Nós não sabemos acelerar o carro sem comprar laranjas ou terminar as compras sem devolver a cesta no lugar. Nós sabemos nomes de flores e de pássaros. Ouvimos a mesma música inúmeras vezes no mesmo dia.
A nós invisíveis o que falta é a alma dos iluminados: a alma dos que desenham em suas paredes, montam bandas, nos falta a alma dos jovens efusivos, bronzeados, a alma dos que correm a favor do pôr do sol.
Só quem é invisível repara nessas coisas, nas pessoas que são vistas sem chuviscos ou sombras de televisões antigas.

Miguel cresceu assim, invisível. O que nem sempre foi de todo mal. Ao contrário da maioria das pessoas, o garoto Miguel não fazia nada pra mostrar para os outros, não queria a atenção de ninguém, não fazia sentido, já que ninguém o via. Ele fazia o que queria (mesmo nunca querendo muita coisa). E, mesmo deixando certo tom de indiferença, ele era dotado de turbilhões de sentimentos, até mais, muito mais que as pessoas normais. Como pode alguém invisível ter tanto sentimento dentro de si? Achava pouca graça.

Foi assim que acordei, semana passada ou retrasada, entendendo tudo sobre a invisibilidade do menino Miguel. Ele nasceu sem o concreto, o palpável, nasceu sem a consistência material dos fúteis. Miguel nasceu sentimento, esse que não se vê, sentimento este que não se veste, não se sente concretamente. Miguel não tinha o fosco do concreto, mas tinha o brilho dos sentimentos invisíveis. Por isso não era bom, nem mau. Sentia raiva (era repleto deste sentimento invisível), mas não socava a parede imediatamente por ser dotado de tanta sensatez (sentimento também muito invisível que preenchia Miguel), sabia que a parede reagiria com uma força contrária de mesma intensidade, e por isso não o fazia.

Sentimentos formam aproximadamente 90% de uma pessoa translúcida, mas existem outros motivos que nos tornam invisíveis, são eles: sonhos e segredos.
Sonhar ajuda na invisibilidade, remove do concreto. Pessoas normais sabem muito disso, afinal pessoas normais também sonham, e, quando sonham, ficam invisíveis por alguns (poucos) minutos. Elas sonham e se desprendem ao fazê-lo, mas retornam a seu estado normal (coisa que nós, invisíveis, não fazemos questão). O invisível sonha constantemente: sonha em tirar os sapatos no fim da tarde, sonha em ver uma nuvem em um formato interessante, sonha em andar numa rua florida... Carregamos todos os sonhos, todo o tempo, como se fossem verdadeiras bagagens. Sonhos são invisíveis e preenchem mais ou menos 6% da casca de um translúcido.
E, por fim, os segredos. Pessoas normais também têm segredos mas, comprovadamente, os segredos das pessoas normais têm cores, muitas cores. Há pessoas que possuem segredos negros, outras possuem segredos em tons de ciano; os que eu mais gosto são os segredinhos de crianças, são amarelinhos, (as crianças que não são invisíveis são geralmente amarelinhas). Mas os segredos das pessoas translúcidas não têm cor e eu posso explicar: nossos segredos são irrelevantes demais para assumir qualquer cor. Ganhamos sorrisos nas ruas e guardamos em segredo. Treinamos uma música no violão e guardamos em segredo. Esses não merecem cores... Compõem aproximadamente 4% da casca dos translúcidos.


É este o grande motivo da nossa invisibilidade: pouca consistência, muito sentimento. Todos somos uma casca, preenchida com as cores que mais convém. Quanto mais sentimentos,  mais translúcidas as cores, até que desapareçam por completo (no nosso caso).
É engraçado ver o mundo assim, de fora. É como se ele rodasse sem os invisíveis; ele também giraria bem sem alguém normal, mas nós invisíveis, carregamos essa certeza conosco.
Não acredito que Miguel queira sair da invisibilidade, quase nenhum invisível quer. É uma boa zona de conforto.
Ontem eu o vi, não sei exatamente porquê, nas teorias que venho desenvolvendo, invisível não deveria enxergar invisível. Devem haver erros.
Já que algumas pessoas podem enxergar estes translúcidos, melhor ficarem atentos: ver um invisível pode ser perigoso; ferir os sentimentos de algum deles pode ser um grande risco, assim como estragar-lhe um sonho ou descobrir seus segredos, afinal, sentimentos sonhos e segredos são as únicas coisas de que um translúcido é feito.

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Postado por Djessyka às 15:09 1 comentários
Às Palavras

A própria língua discorre sobre qualquer assunto, qualquer um. É assim, cada palavra fixa no seu lugar, colada, pregada, séria, carrancuda. Por ora, faz pequena diferença se está grafada correta, ou incorretamente. Talvez ache pouca graça em um erro ortográfico quase "infazível", mas passe batido um erro de concordância nominal e continue igualmente arrogante. Vou provar que não são tão sérias quanto parecem: O que realmente acontece quando você vira as costas, é que as palavras começam a tremer até sacudir o caderno, ou a tela do computador, e pulam. Todas pra fora da folha, umas caem espatifadas no chão, outras correm. Ou tentam. Mas, quando você torna a olhar, todas já se dispuseram em seus lugares e se realinharam exatamente na forma que você as deixou. Salvo algumas preposições que, por serem muito repetidas, trocam de lugar, mas você não percebe.
Se as palavras fazem isso no papel, assim, espertas, imagina o que fazem na mente. Uma vez que todas as palavras que você conhece estão presas na sua mente, é tudo uma algazarra. Correm, pulam, dançam, rodopiam. E você, pobre você, senta no silêncio do escritório pra escrever um relatório qualquer, sem saber da festa de palavras que sua mente tem que suportar.
Primeiro, quando você vai começar um texto e isso se torna impossível, é porque as palavras dão-se as mãos, seguram-se muito, muito forte umas nas outras e não deixam com que apenas duas ou três te entreguem um bom início. Ouso dizer que tiram algum sarro da sua cara quando você leva a mão à testa para forçar-se a escrever.
Finalmente, quando você começa a escrever, lhe foge a palavra perfeita para o contexto. Aí sim, aí você percebe que elas têm vida própria. Ela corre a sua volta, dribla você, e você não consegue capturá-la (aliás, demorei um pouco pra conseguir lembrar do verbo "capturar", me fugiu à mente). Ela ri. Quando você lembra, de uma vez por todas, escreve rápido. Por mais que ainda não seja a hora exata de utilizá-la, você escreve no canto da página pra lembrar depois. Algema a pobrezinha. Ela dança quando você vira as costas pra tomar um café, faz caretas como se menosprezasse sua presença, mas torna a algemar-se uma vez que foi escrita.
Algemadas, são sérias, mas não pense que ficam assim cem por cento do tempo. Basta você virar as costas. Em verdade, a maior alegria de todas as palavras é quando são abandonadas em um papel que nunca mais será encontrado: Pulam, saltam, estão livres! Mas, se você encontrar uma carta escrita há anos, guardada no fundo de um baú, estas palavras, já dispersas, correrão feito crianças pra que se disponham novamente em seus lugares de origem. Isenta de qualquer história de pescador, já percebi algumas preposições invertidas, mas as palavras não se mexem enquanto observo, elas nunca dariam o braço a torcer.
Digo com toda certeza que essa não é uma teoria, é um fato. Comprovado.
Como tudo nessa vida, ainda faltam alguns detalhes. Ainda não descobri se a palavra "perspicácia" foge mais rápido que a palavra "arrastar", por exemplo.
Vou prestar mais atenção. Mas, como disse, são só detalhes.
 

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Postado por Djessyka às 11:24 0 comentários
E se o Mark Chapman tivesse poupado Lennon, e se o Hitler tivesse morrido ainda criança devido a um problema respiratório qualquer. E, se Einstein tivesse morrido ainda criança devido a um problema respiratório qualquer. E se ninguém tivesse escrito a música In My Life, e, se eu tivesse escrito a música In My Life. E se os protestos de junho não tivessem acontecido, e se os protestos de junho continuassem acontecendo. E se Rui Barbosa não tivesse mandado queimar os documentos da escravidão. E se o projeto da primeira bomba atômica tivesse sido queimado, e, se a boate de Santa Maria não tivesse queimado. E se meus pés fizessem menos calos, e se Jesse Owens tivesse calos em 36, e se Raul Seixas não tivesse tantos calos quando seu pai lhe dava 36. E se eu estalasse meus dedos com menos frequência, e se Beethoven tivesse estalado os dedos. E se Eva não tivesse oferecido a maçã, e se a maçã caísse na cabeça de alguém que não fosse Isaac Newton. E, se as crianças não crescessem tão rápido, e se o amor se espalhasse mais rápido, e se os namoros não terminassem tão rápido. E se soldado não tivesse família, e se só os soldados tivessem família, e se todos tivessem família. E se todos usassem suéteres iguais no inverno, e se todos fossem presos por usar suéteres iguais no inverno, e se todos estivessem agora presos em uma liberdade monstruosa mesmo sem ser inverno. E se as mães fossem eternas, e se a vida não for eterna. E se não existissem chutadores de carteiras, e, se não existissem chutadores de bola. E, se o Pelé fosse branco, e, se o Pelé não fosse. E se não existisse Smartfones, e se tivesse praia em Minas Gerais. E se eu fosse menos tímida, e, se Elvis Presley tivesse sido tímido. E, se todos os pais tivessem chaves de fenda, e, se todos os olhos tivessem brilho. E, se todas as crianças tivessem lápis-de-cor.
 

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